Estive no Chile por um período longo, conhecendo diversos lugares interessantes, mas Torres del Paine é um desses lugares que marcam a alma, não apenas pelas torres de granito que dão nome ao parque, e por si só já valeriam a viagem, mas também por menos famosos picos, lagos e glaciares que existem por lá.
Eu jamais havia visto um Glaciar antes, pelo que me contaram o Glaciar Grey que está em Torres del Paine é um dos únicos do planeta que ainda crescem, mas nem precisava, já é hipnotizante, infinito aos olhos, também perigoso aos que se aventuram a caminhar por ele. Eu me contentei a caminhar ao lado dele, além de aprecia-lo por 2 dias logo que acordei, pois acampei em frente a seu término, uns 50 metros nos separavam.
A volta completa pelo parque é uma caminhada pra quem gosta de caminhar, 140km, trechos fáceis como o “W” que ladeia o lago principal, se alternam com trechos complexos, como o Passo, no qual a altitude tira o pouco de ar gelado disponível, um rio nada lento, nem raso, seguido de um brejo quase me deixaram descalço, ou mesmo uma floresta temperada que me lembrou filmes medievais repleta de árvores centenárias, algumas até teimosamente em pé.
Fazer a trilha completa tem exigências pelo parque, não se pode fazer sozinho, e no meu caso eu viajava sozinho, então a preparação começou antes, no navio que desci pelos Canales Patagônicos, entre Puerto Montt e Puerto Natales, tratei de buscar outras pessoas em situação e com objetivos semelhantes, foi tão fácil que formamos um grupo enorme, 20 pessoas, a maioria casais com muita disposição e pouca experiência, mas haviam também outras duas pessoas que viajam só, uma até me surpreendeu, um americano que morava no Alasca, a surpresa é ver ele se interessar em férias próximo a Antártica, enfim, aprendi muito com ele sobre os ventos e até a vegetação do local, ele sabia muito sobre regiões frias.
A viagem pelos Canales dura cerca de uma semana, a comida é relativamente farta, mas ao estilo da região com muitos frutos do mar, é tradicional por lá um saboroso balde de mariscos, mas foi um desses que quase causou um problemão, um de meus novos amigos resolveu experimentar o petisco e por ter gostado demais comeu até mariscos que não abriram durante o cozimento, erro sério, uma infecção intestinal o derrubou por quase metade da viagem, mas ele sobreviveu e estava em pé quando desembarcamos, infelizmente não muito em pé, a fraqueza clara nos fez mudar os planos, passamos 2 dias em Puerto Natales pra ele se recuperar um pouco, além disso optamos por fazer a trilha completa no sentido horário (quando o mais comum e recomendado era o sentido anti-horário), dessa forma começaríamos pelo “W” parte mais simples.
No começo da trilha foi só alegria, o pessoal tinha muita disposição, quando subimos o Vale Frances eu até me senti meio lento, o povo praticamente subia morro correndo, mesmo assim o esforço e o frio me causavam muita fome, eu havia previsto o cardápio de modo a otimizar a fome e o peso, afinal passaria 10 dias andando e portanto 20 refeições ocupavam minha mochila (entre café da manhã e janta), sem contar um gigantesco volume de barrinhas para o dia a dia, isso era metade da mochila que estava com respeitáveis 20 kg, claro que a outra metade era disputada pelo material de camping e as roupas de frio, bem volumosa não deu conta de acomodar o isolante dentro dela, tudo bem, foi amarrado fora mesmo 😏.
Como eu estava comendo mais que o esperado comecei a considerar compras nos albergues, sim, o parque dispões de uma série de albergues, especialmente no trecho do “W”, mas são extremamente disputados, reservas com muita antecedência e preços salgados, tanto pra se hospedar quando pra comida, uma coca cola 2 litros custava algo com 10 USDs, nem vou entrar no mérito do custo de refeições, isso não me animava muito, mas seria uma opção caso a fome exagerada continuasse.
Tudo correu muito bem durante o “W”, nosso amigo debilitado parecia ter se recuperado e o grupo se entendia bem, sem estresses de ritmo e boa conversa, mas o clima piorou muito, quando chegamos ao Glaciar Grey o vento e a chuva vieram com força, aquela noite foi complicada, quase colocamos fogo nas barracas tentando cozinhar com tanto vento, e nada pôde ser secado. Meus colegas ficaram apavorados, especialmente os casais deram sinais de dúvida sobre suas habilidades e como consequência me abandonaram, no dia que sairíamos para a parte mais difícil da trilha veio a notícia: Se eu continuasse a trilha, continuaria sozinho, eles voltariam de barco para a portaria, tinham desistido.
A notícia era péssima, pois fazer a volta sozinho era proibido e mesmo driblando o controle dos raros guardas florestais, certamente eu teria de me explicar na saída do parque, também os riscos aumentavam, não que eu considerasse complicada a trilha até então, mas as condições não eram favoráveis pra alguém acostumado outro tipo de região (uma mais tropical), meio que pra compensar a “mancada” meus amigos me ofereceram toda a comida deles, não precisariam, o retorno seria feito por um barco que liga o fim do “W”, onde fica o glaciar Grey, a portaria do parque, e essa comida extra veio muito bem vinda.
Persistente que sou (teimoso no olhar de alguns) conversei com um outro andarilho que vinha no sentido recomendado da trilha sobre as dificuldades que me esperavam e resolvi seguir para a volta completa, o dia seguinte ainda seria fácil e eu poderia repensar, mas no fundo sabia que faria toda a volta.
O ponto considerado mais crítico era “El Paso”, ponto mais alto da trilha, que nem era tão alto assim, cerca de 2.000 metros até onde sei, mas o frio lembrava picos mais altos, no Paso (lê-se Passo) tinha um rio que atravessava a trilha e no sentido que eu caminhava, após o rio, um brejo, no dia que cheguei até ele chovia um pouco ainda e pra manter a tradição de minha completa falta de equilíbrio, cai no rio. como se não fosse suficiente o brejo não era muito molhado, mas muito barrento, com lama nos joelhos não tinha bota que parasse no pé por muito tempo, então a cada 20 ou 30 passos eu parava para reforçar as amarras, mesmo assim por duas vezes tive de cavar a lama pra recuperar as botas que ficaram lá, não havia opção, eu precisava muito das botas.
Só pra constar o trajeto entre El Paso e o camping de Los Perros, meu destino naquele dia, não era longo, mas eu demorei muito graças a essa lama pegajosa, cheguei a noite em Los Perros, e embora a adrenalina me mantivesse com certa disposição, eu certamente estava em um estado calamitosos, os responsáveis pelo camping demonstraram isso em suas caras ao me verem. Depois que me sequei um pouco em uma lareira de tambor no abrigo do camping, montei a barraca e arrumei um local pra estender as roupas, era umas 22h já quando me acomodei no saco de dormir e tive talvez a melhor noite da minha vida, dormi sem me mexer por umas 12h. Acordei novo e feliz, a parte mais difícil de toda volta estava superada.
Eu tive muita sorte, o clima melhorou muito, o sol estava fazendo um bom trabalho em secar minhas roupas e decidi ficar mais uma noite por ali, nessa tarde conversei com uns guardas florestais que vieram questionar se eu estava sozinho (já esperado) e o porque desse fato, a bronca foi leve, afinal não havia muito o que eles pudessem fazer ali.
O dia seguinte prometia ser muito agradável, o trecho era relativamente plano, com sombra das árvores e pequeno também, menos de 15 km me esperavam. Tudo havia secado, a mochila estava bem mais leve, seca e com menos comida, eu sai de Los Perros num ótimo humor por volta das 10h da manhã, as previsões se cumpriram até o começo da tarde, mas uma tempestade se formou e eu me tomei umas 3 horas de chuva torrencial até o próximo acampamento, que pra minha sorte era bem organizado, um dos poucos que o camping contava com um abrigo estruturado, com chapas de metal e um maravilhoso fogão a lenha, me diverti colocando as roupas sobre a chapa pra secarem (também quase perdi o chapéu que ameaçou pegar fogo).
Foi uma parada curta, logo cedo segui para minha última etapa, estava um pouco ansioso com ela, precisava chegar a portaria porque eu já não tinha mais comida, só meia dúzia de barrinhas que terminariam naquela manhã, na portaria havia um albergue grande, e jantar por lá era meu plano. Nesse dia o vento voltou com força, precisei rearranjar a mochila após ser derrubado duas vezes pelo vento, perdi uma horinha nessa parada de ajuste, mas agora coube tudo dentro dela, fiquei bem mais ágil.
A caminhada em si desse ultimo trecho foi fácil mas longa, caminhei o dia todo pra vencer os 25km previstos, mas não foram suficientes e claro, anoiteceu, complicando muito as coisas porque eu também já não tinha mais pilhas pra lanterna (foram 10 noites, e pilhas pesam um monte, não é), mas como eu costumo ter sorte a lua cheia me ajudava bastante a seguir o caminho, com um pequeno contratempo eu devo ter perdido alguma sinalização da trilha e em vez de terminar na portaria terminei no abrigo dos guardas 😳, lá se ia meu anonimato, não encontrei ninguém por lá naquele começo de noite, mas também não encontrei o caminho pra portaria a partir dali, então, sem comida, sentei na porta do abrigo, peguei minha gaita e fiquei me divertindo por quase uma horinha, quando duas pick-ups finalmente chegaram.
Claro que levei mais umas broncas, também tive de contar umas 3 vezes o motivo de eu estar ali, sozinho, mas depois me ofereceram uma carona, mais 2km somente até o camping da portaria, onde me alojei, depois segui para o albergue onde consegui comer salmão, batatas e até um refrigerante, foi tudo muito agradável.
As fotos certamente não fazem jus a beleza do lugar, nem fui muito paciente pra tirar fotos durante os momentos complicados da viagem, mas lembro cada segundo dela com carinho…