Lago Inle em Myanmar

Quando iniciei minhas pesquisas sobre Myanmar, já tendo decidido ir para lá para conhecer uma cultura budista sem muita interferência da globalização, cheguei rápido ao Lago Inle, um local descrito como remoto na maioria dos textos que encontrei na internet e isso chamou especialmente minha atenção.
 
A agência que contratei pra alinhar a viagem não gostou muito dessa minha escolha, insistiu bastante para que tirasse do roteiro esse destino, mais ainda, na previsão de custos foi colocada como desvio muito custoso, ir para o lá aumentaria os custos da viagem para Myanmar em quase 50%. Isso não me abalou muito, quem me conhece sabe de uma certa teimosia que tenho em alguns momentos, na verdade, depois da viagem percebi que a realidade não era nem de perto o que a agência tentou me passar e como consequência perderam o cliente em definitivo, pois foi sem dúvida um dos pontos altos de minha viagem a esse pais.
 
De Bagan voei por quase uma hora para a região do lago, voo tranquilo em um avião russo (foi a primeira vez que voei em um avião russo) chamava a atenção de todos os avisos serem em inglês, chinês e russo, a aeronave era de tamanho médio, dessas com 3 fileiras de cadeiras em cada lado, estava praticamente cheio e já isso era um sinal que estava indo pra um local interessante.
 
Após o pouco entretanto veio a surpresa, havia um confuso guichê da polícia em que todos deveriam apresentar documentos, a sinalização existia apenas no idioma local, quase todos do avião ficaram bastante perdidos por quase 15 minutos, tentando entender o que precisava ser feito, não era um voo internacional, ninguém esperava um guichê de migração 😃. Pior, depois de conseguir chegar a ele tive meus documentos apreendidos, todos, passaporte e passagens de retorno, além de me pedirem pra acompanhar um policial, eu fiquei bastante nervoso com a situação, sem conhecer o idioma me sentia totalmente fragilizado pela situação.
 
Um policial então me acompanhou até a porta do aeroporto, onde uma guia me esperava com diversos documentos extras pra eu preencher, ela não explicou nada, já estava com minhas malas, disse pra eu preencher os formulários e disse apenas pra eu entrar no carro assim que acabasse, mas eu queria saber só dos meus documentos, agora já me comunicando em inglês eu insistia em explicações, mas ouvia só uma resposta: “entre no carro, por favor”
 
Muito contrariado e já imaginando todo tipo de problema, observava que já me cercavam 5 policiais e outros dois guias que tentavam me acalmar (explicar não, só pediam pra eu manter a calma), quase uma hora depois aceitei a sugestão e entrei no carro com uma condição: lá dentro receberia as explicações que estava pedindo antes de sair para qualquer lugar (o que não foi respeitado inicialmente). A angústia era grande!
 
Até sairmos do aeroporto a guia falava apenas com o motorista no idioma deles, na estrada em direção a cidade ela se voltou pra mim e começou novamente o questionário, parecia validar tudo que eu havia preenchido nas fichas, até que chegou a um grupo de perguntas que ela fez 3 vezes e percebi que tudo aquilo tinha a ver com essas perguntas:
 
Qual sua idade? Você é solteiro? O que veio fazer aqui na região? Conhece alguém na região?
 
Respostas fáceis e como parece que as minhas elas convenceram, finalmente ela começou a explicar do que se tratava todo aquele circo, tráfego de mulheres.
 
Aparentemente eu tinha o perfil perfeito de traficantes de mulheres que costumavam ir a região em busca de casamento, era uma região pobre, que muitas sonhavam deixar em busca de uma vida melhor, havia então uma pratica comum, estrangeiros vinham, casavam com essas mulheres (algumas vezes crianças de 10 a 12 anos) e casados ganhavam o direito de leva-las para o país de origem, onde geralmente eram destinadas a prostituição ou mesmo escravidão, segundo a guia, e havia um grande esforço do governo para reduzir esse movimento que havia aumentado quase 500% na região desde a abertura do pais para o turismo.
 
Entendi naquele momento o motivo de tanto estresse, mas não gostei nada de saber que só teria meus documentos quando embarcasse de volta a Yangon, isso se continuasse solteiro 😃 .
 
A cidade ficava há uns 30 minutos do aeroporto, foi bom pra respirar e colocar a cabeça no lugar novamente. Naquele momento havia em mim um mix de sentimentos, parte de mim não queria acreditar que aquela prática terrível ainda existisse, parte se irritava por ter sido confundido com um tipo terrível de ser humano, e parte se alegrava com a certeza de não ser esse tipo terrível, o que me dava a certeza que tudo acabaria bem.
 
Ainda haviam alguns testes, 😃  antes de ir ao lago paramos em alguns pontos para conhecer a cultura local, uma fábrica de papel artesanal e uma fábrica de guarda chuvas (feitos de bambu e papel) foram deveras interessante ambas, na verdade não passavam de lojinhas onde tudo acontecia em espaços menores que 50m2, e sempre na mesma composição de pessoas, um adulto e várias meninas trabalhando, geralmente adolescentes, e eu gostei de conhecer os processos, ver o trabalho dos artesãos, até comprei uns leques que estão imponentes na minha parede atualmente. Naquele momento a guia não me contou, mas depois me explicou que eram testes pra ver como eu reagiria as meninas, passou despercebido pela minha ingenuidade talvez, só me diverti.
 
Visitamos também o templo dos 1000 budas, até hoje tenho a sensação de que esse é um nome comum para os budistas na região, além de comum a prática para construir o templo, eles constroem em uma parte do templo paredes com centenas de pequenas cavidades que recebem pequenas estatuetas de buda, fica bem bonito geralmente, mas essas estatuetas são então vendidas para a construção do templo, nesse que visitamos haviam cada estatueta recebe uma etiqueta com o nome e a origem de seu comprador, segundo a guia em agradecimento, o dinheiro é usado para construir o templo, era curioso ver os nomes, havia gente de todo o mundo, inclusive do Brasil eternizados naquele lugar.
 
Após as paradas seguimos para o porto, onde embarquei numa canoa longa, junto com mais alguns turistas, já estava no fim da tarde e precisávamos chegar ao hotel, que ficava na beira do lago antes do anoitecer, eram proibidos barcos a noite segundo explicavam, pois muitos pescadores dormiam no próprio barco e acidentes estavam ocorrendo com os barcos de turistas, únicos com motores, percebi ali que estava entrando em uma comunidade com hábitos bastante rudimentares, mas muita tradição, me animei.
 
O lago era enorme, da sua entrada pelo canal que eu vinha não se via os vilarejos que estavam nas margens opostas, mas as canoas de pescadores se espalhavam no horizonte, eles lá ainda usam uma técnica de pesca local baseada numa peculiar rede de pesca com armação, meio cônica, e um arpão manual, usado para abater o peixe quando este ainda está no fundo do lago, prezo a rede, você já pode imaginar que esse método só é possível devido as águas muito transparentes, o Lago Inle tem entre 3 e 4 metros de profundidade.
 
O hotel surpreendeu, era bem mais sofisticado que o resto da região e muito agradável, contribuiu bastante para mitigar de vez o dia estressante, na primeira noite houve um show de dança típica no restaurante, que estava lotado, mas certamente eu era o mais jovem por lá, as fotos não ficaram muito boas desse show pois a iluminação era difícil, mas gostei bastante, numa temática meio encontro do sol e da lua os figurinos eram bastante rebuscados, foi bem interessante, mas me surpreendeu mesmo o céu visto quando o gerador do hotel foi finalmente desligado, numa noite sem lua, eu realmente me senti em um lugar remoto.
 
O roteiro programado pra mim seguia o solicitado, queria conhecer a cultura local, os templos e entender os valores que mantinham, então começamos cedo pela vila de pescadores, em palafitas ficavam nas margens mais distantes do lago, era uma vila grande e bastante independente, havia de tudo, de comercio de joias feitas por artesões locais até pequenas fábricas de barcos, utensílios de cozinha, roupas e até tecido feito do junco colhido no lago e uma culinária bem local, o primeiro dia foi uma maratona de visitas, o mais interessante é que não havia praticamente nenhuma máquina elétrica (embora parte do vilarejo tivesse luz elétrica), foi como voltar ao século 19 e ver tudo ser produzido por artesões, cada peça tinha seu charme e era única, tudo foi explicado em detalhes pela guia que também gostava de negociar o roteiro, ela me passou uma lista enorme de locais logo cedo ao entrar no barco e perguntou quais eu preferia visitar.
 
O segundo dia foi dividido em 2, pela manhã fomos as plantações flutuantes 😃 , foi muito curioso ver como produziam hortaliças, grãos e outros produtos básicos em estruturas frágeis, flutuantes, sobre o lago, não era um teste, navegamos horas nessas plantações.
 
Na parte da tarde fomos ao principal templo as bordas do lago, onde anualmente se realizava uma festa popular para os pescadores, o local era interessante, mas não tanto quanto a grande variedade de culturas e pessoas que vi por lá, agrupados em grupos espalhados pelo templo era fantástico de ver, havia de tudo, turbantes, carecas, judeus, pescadores, orientais e ocidentais, só não vi gente com ternos, mas todos ali reunidos sobre as quatro estatuetas de Buda que eram a principal atração do templo.
 
Eu disse estatuetas de Buda, bem, terão de acreditar me mim e eu tive de acreditar na guia, na verdade 4 formas muito parecidas com grandes cabaças douradas ocupam o altar, é tradição no lugar a compra de pequenos pedaços de folha de ouro (cerca de 1cm2, vendidas ali mesmo por algo como 1 usd) e colar as mesmas nas estatuetas, até eu experimentei o ritual, mas claro que isso cobriu completamente as estatuetas.
 
No templo também ficam os barcos usados na festa anual dos pescadores, ricamente ornamentados há um barco pra cada estatueta, imagino ser uma festa interessante pra se conhecer.
 
No último dia que fique por lá visitei o que a guia chamou de ruinas da cidade antiga, muito na linha de Bagan centenas de pequenos pagodes, fomos de barco, claro, seguindo por um rio local, no local uma feira de antiguidades repleta de turistas, muitos barcos e formações interessantes, mas sem qualquer organização turística, caminhamos por entre os pagodes e até entramos em alguns, os detalhes impressionavam. Nesses momentos que percebo o quanto tola é a ideia que evoluímos muito nesses últimos milhares de anos, claro, não haviam telefones celulares, mas havia muita tecnologia, cultura e bom gosto, um lado humano bastante evoluído muito antes do que nosso horizonte limitado imagina.
 
Eu sei, o esse post ficou enorme, mas equilibrado com as mais de 240 fotos que separei da região e resolvi não dividir em partes, algo me diz que parte da beleza da região está exatamente no inusitado e diversificado reunido em um só lugar, então mantive como uma única história.
Espero que gostem.