Alguns de vocês conhecem meu gosto por fazer trilhas em montanhas, mas a parte das piadinhas relacionadas quase sempre a ignorância que muitas pessoas cultivam sobre a atividade, fazer trilhas vai além do esforço físico, pode ajudar a ver o mundo sob outra perspectiva.
Primeiramente, muitas das piadinhas estão certas, a atividade exige que se abandone muito do conforto que tanto batalhamos diariamente pra ter: dormir no chão ou em camas pouco confortáveis, comida racionada e nem sempre saborosa, exercício de horas, por vezes sob sol escaldante, em terrenos irregulares, com segurança questionável e quase sempre próximo ao limite de nossas forças, exige também disciplina para cumprir roteiros a risca, sem muitas alternativas nem mesmo para desistir, sem falar nos inusitados banheiros ou até em casos extremos, a falta deles, tudo isso é comum.
Entretanto, nada disso acima é importante pra quem se aventura em uma trilha, os valores associados a esses pontos são passageiros, superficiais e momentâneos, por isso, quase sempre nem são considerados por quem pretende a experiência de uma montanha.
Podemos até vê-los sob outro angulo:
– Que conforto pode ser comparado a satisfação de superar um desafio?
– Que diferença faz a cama quando o corpo está realmente cansado?
– Qual comida é mais saborosa que aquela que comemos com fome?
– Que aprendizado maior podemos ter que conhecer nossos próprios limites, e poder nos esforçar para superá-los?
– Qual disciplina precisamos desenvolver para que possamos ter uma vida menos incerta?
– Quantos imprevistos temos todos os dias e precisamos desenvolver bom senso pra lidar com eles?
– Quantas vezes e em quantas situações não nos é dada a opção de desistir?
Por isso gosto de dizer, subir uma montanha é um treinamento pra vida! Que ainda me traz felicidade como bonus!
O ensinamento é tão claro a todos que se propõe a tê-lo que todo montanhista sabe da importância do grupo, em quase 30 anos subindo montanhas nunca me negaram ajuda quando precisei e eu pude também ajudar em oportunidades que surgiram. Não me refiro a ajudar pessoas conhecidas, nem a “pessoas importantes”, me refiro a colaboração real, sem a expectativa de ter algo em troca, simplesmente porque tem que ser feito, porque todas as pessoas são importantes, porque as vezes os limites não são superados mesmo pelos mais preparadas, os imprevistos podem ser perversos demais para uma pessoa em determinado momento, estas então precisam de ajuda e todo montanhista estará lá para ajudar.
Alguns ensinamentos são básicos, eu me acostumei até a repetir os mesmos para muitos dos iniciantes que caminharam comigo um dia. E me sinto muito gratificado pelos que superaram as trilhas que escolheram, e pelos que me levaram a desistir de um desafio, ambos me ensinaram muito.
– Não é o preparo que supera os limites, é a o que está dentro da cabeça de quem tem o limite.
– Medo é o que mantém uma pessoa viva nos casos extremos, mas também é o que pode matá-la, tenha bom senso nas decisões, e tome decisões!
– A Montanha é mais forte, mais velha, maior e mais sábia que qualquer ser humano, se não a tratar de modo adequado, ela pode te matar! Alinhe-se a ela para ter toda força dela a seu favor e superará qualquer limite.
– Seja precavido, planeje, mas entenda que nunca é possível prever tudo que acontecerá. Quando passar por um imprevisto, aprenda, recue se necessário e possível, use o aprendizado quando for planejar a próxima trilha.
– Fique atento aos sinais do que pode causar o que pode te atrapalhar, não deixe acontecer para depois lamentar. Mantenha o foco nos objetivos para não se perder na trilha.
– Ajude aos que precisam de ajuda, quantas vezes forem necessárias, mas não espere gratidão deles, espere a sensação de fazer o que é preciso em seu próprio coração. Entretanto, alerte para surtos de ingratidão, pois esse sentimento machuca o coração. Os ingratos não entenderam o espirito da montanha.
– Compartilhe o que tem, não importa se tem muito ou pouco, mas compartilhar não significa ficar sem o que tem em favor dos outros, conheça seus limites.
– Você pode ou não seguir as regras da montanha, mas sempre para cada atitude haverá uma consequência.
– Não adianta pensar em desculpas por suas atitudes e as consequências destas, se não corrigir o rumo as coisas pioram, mais imprevistos surgirão. As vezes a correção do rumo exigirá muito mais do que quer oferecer, mas manter o foco é sempre necessário.
– Sua recompensa não será pontual, será todo o processo, não espere uma medalha, mas aproveite cada momento da experiência, aproveite o exercício revigorante, o cansaço, a água fresca dos rios, o céu estrelado como nunca verá nas cidades, o frio da madrugada, as novas pessoas que conhecerá, o silêncio de alguns momentos da caminhada, a “música” da montanha que é cantada por pássaros, pelo vento, pelos rios, por tudo!
Resolvi compartilhar esse meu gosto porque as regras acima podem ser usadas no nosso dia a dia, vou fazer algumas associações:
– Não é o currículo de uma pessoa, mas a atitude dela perante os problemas que permite as soluções.
– Medo, incerteza, são parte da vida, precisamos lidar com eles, nunca fugir deles, mas gerenciá-los com bom sonso, jogo de cintura, para que não deixemos espaço para que nos dominem!
– A vida é mais forte, continuará independente de nossa existência, somos únicos em cada um de nós, mas substituíveis em cada uma das coisas que fazemos, alinhe-se as necessidades da vida e irá encontrar qualquer solução com a força que a vida oferece.
– Planeje todas as situações que conseguir antever, use de bom senso e jogo de cintura para o que não puder prever, aprenda com os imprevistos para o próximo planejamento.
– Fique atento ao que acontece ao seu redor, os sinais, mude o que estava planejado se isso se fizer necessário sem se lamentar, mas mantenha o foco nos seus objetivos.
– Ajude a resolver os problemas, mesmo que sejam reincidentes, mas alerte para a necessidade do aprendizado, no comodismo dos que não querem aprender reside a ingratidão e o conformismo.
– Compartilhe o que puder, especialmente o que puder ajudar aos outros sem perder a atenção nas suas próprias necessidades.
– Tenha as regras claras, seguindo-as ou não, mas desenvolva a consciência das consequência de suas atitudes. Para orientar o bom senso, pode observar as regras que a sociedade cria, são chamadas de leis, rs.
– Não se preocupe em explicar o passado e sim em aprender com ele, para ter um futuro melhor, mantenha o foco nos objetivos!
– Não espere recompensas, se o alinhamento for correto, elas virão, mas a maior recompensa será sempre a maturidade adquirida com o aprendizado colhido dos caminhos que escolher, aproveite sua caminhada.
Não é fácil seguir todas as recomendações da montanha (para subir a montanha ou para levar a vida), quem já não ouviu histórias de montanhistas muito experientes que morrem em uma de suas aventuras, mas sempre vemos nesses casos entrevistas conformadas de outros participantes da tragédia, e estes sempre conscientes que fizeram sua parte, que ajudaram, que se sacrificaram, mas que mesmo assim as consequências do imprevisto estavam além de seus limites.
Bem, para concluir esse texto um convite: Imaginem-se num lugar que poucos tiveram a oportunidade de estar, acompanhado de pessoas que mal conhece, mas que já se tornaram sua família, (e trouxeram todos os problemas e virtudes existentes numa família junto com elas e estas coisas te ensinaram muito em pouco espaço de tempo), observando coisas magníficas como o pôr do sol com cores inimagináveis, o luar em um vale ou sentindo o calor de uma fogueira com boa e ingênua conversa, regida pelo cansaço, e aproveitando tudo isso com uma sensação de felicidade única, sem que esta tenha vindo de nada externo, ela vem de você, pela sensação de se superar, pelas possibilidades de se tornar um ser humano melhor. Isso é o que a montanha te oferece!
Abraço a todos e um ótimo feriado!
Omar