Estava na Amazônia há algumas semanas, mas ainda me restavam alguns dias nas férias e resolvi arriscar, conhecer o parque nacional mais remoto do Brasil, não era algo muito simples, o parque é restrito a visitação turística, não tem qualquer estrutura pra isso também e consequentemente nenhum pacote com guias ou apoio, tudo teria de ser trabalhado, mas esse desafio só aumentou a vontade de ir até lá.
Após alguma pesquisa descobri que a cidade mais próxima do parque era Novo Airão (e até o porque do “novo” nesse nome aprendi nessa viagem), esta cidade pequena ficava há algumas horas de Manaus, trajeto geralmente feito de barco, mas no meu caso havia um certo conflito de agenda entre o barco e minhas férias então optei pelo ônibus, foram 4 horas de muito balanço em uma estrada mais irregular que as trilhas que estava acostumado, mas a cidade era muito simpática, havia uma pequena pousada que me tinha naquele momento como único hóspede e a dona foi muito prestativa em me ajudar com a burocracia que eu precisava passar por lá.
Primeiramente o IBAMA, as autorizações para visitar o Parque Nacional do Jaú na época eram dadas exclusivamente na filial local do IBAMA, e demoravam até 3 dias úteis segundo me disseram, prazo que eu não tinha, então la fui eu choramingar uma autorização, sem pretensão alguma de fazer pesquisas ou coletar algo diferente de histórias e fotos qualquer autorização me servia.
Quando consegui ser atendido no IBAMA eles foram muito prestativos, mas não ficava muita gente por lá na filial regularmente, foram 3 tentativas em horários diferentes e algumas horas de espera até conseguir falar com alguém, então preenchi alguns formulários e pedi para me ajudarem com o prazo, no dia seguinte repeti a maratona e felizmente consegui a autorização.
A cidade de Novo Airão
Uma cidade simpática, pequena, com cerca de 16 mil habitantes, mas poucos na cidade que não tinha mais de 10 ruas, a maioria mora em pequenas chácaras nos arredores, mas além da pousada, da igreja e alguns bares havia um restaurante 😃 voltado para atender turistas que lá chegavam de barco vindos de hotéis de selva, comuns na Amazônia.
Nesse restaurante uma atração interessante, botos, uns 4 ou 5, livres no rio que era acessado em um pequeno cais nos fundos do restaurante, mas inteligentes o suficiente pra saberem que sempre havia um turista encantado com a presença deles tão de perto no restaurante e como turista estaria muito disposto a pagar por pratos e mais pratos de peixe para brincar com eles, foi uma das tarde mais divertidas da minha vida!
A Voadeira
Entre as idas e vindas no IBAMA eu havia conseguido um barqueiro disposto a me levar ao Parque Nacional do Jaú, o parque ficava oficialmente no mesmo município, mas seriam 7 horas de voadeira até lá, as distâncias no Amazonas parecem sempre exageradas.
A voadeira era confortável, com uma pequena cobertura protegia levemente do sol (mas não da chuva, nem do vento 😃 ) e o barqueiro era muito simpático, falava muito na verdade, mas ok, ele ficava na popa e eu na proa, mal ouvia o que ele ficava tagarelando.
Além de barqueiro ele conhecia o parque e também um caboclo que morava por lá, isso ajudava demais, seria um lugar para pernoitar.
Saímos cedo da cidade, o rio não estava muito calmo e a voadeira bateu bastante, cheguei bem dolorido ao parque, mas tudo correu bem, a melhor parte da viagem começava naquele dia.
Onde me hospedei
Fui recebido por um caboclo que infelizmente não guardei o nome em sua casa, era uma construção simples de madeira e palha com uma confortável varanda e um único cômodo, que funcionava como quarto, a cozinha era externa. O caboclo trabalhava para o IBAMA, ele diariamente 2 vezes por dia coletava com uma vara o nível do rio, além de valores meteorológicos em uma pequena estação independente (com energia solar) e digitava os valores em uma estação de dados do IBAMA, também movida a energia solar.
O Rio medido era o Rio Negro, gigante, estávamos em um trecho que se afinava com cerca de 500 metros de largura após uma cachoeira.
Na casa mesmo não havia luz ou qualquer conforto além do teto, logo me avisaram para montar a rede na varanda e ao perguntar onde poderia tomar um banho acabei ganhando a primeira boa história pra contar.
“No igarapé” – respondeu o Caboclo, e eu comecei a retirar da mochila o que precisaria pro tal banho enquanto o barqueiro e o caboclo conversavam sobre possíveis atrações para me agradar, no dia seguinte podemos ir a cachoeira sugeriu o caboclo e hoje podemos caçar jacarés…
Gostei da ideia e na curiosidade (e ignorância) fui logo perguntando onde era mais comum ter jacarés por ali?
“No igarapé” – respondeu o Caboclo
Você já pode imaginar que desisti do banho! Foi mais seguro ajudar a preparar o frango que iríamos jantar 😃
A caça ao Jacaré
Na mesma noite saímos a caça (ecológica) do jacaré, começamos pelo igarapé, claro, e lá não levamos nem meia hora para achar um filhote, com cerca de 1 metro, que já teria me divertido, mas não satisfez o caboclo, achou que era pequeno demais e sugeriu atravessarmos o rio Negro, do outro lado ele sabia onde eles ficavam, disse.
Então fomos, de canoa claro, o caboclo a frente e o barqueiro ao fundo com remos e eu podia apreciar o passeio vip 😃 . Ao sair do igarapé um frio na barriga, a escuridão era densa, nada víamos a não ser o que a lanterna alcançava e garanto não era a outra margem.
Assim remamos por mais uns 15 minutos até que o caboclo me chamou e pediu pra procurar a caneca no fundo do barco, segundo ele era preciso tirar a água, eu de botas não havia sentido mas ao apontar a lanterna para o fundo da canoa percebi que já havia muita água, estava literalmente numa canoa furada em meio ao rio gigante habitado por jacarés! Me tornei rapidamente um eficiente “esvaziador” de canoas furadas 😃 !
Mas isso não desanimou, cerca de meia hora depois entramos em um igarapé na outra margem do rio, maior que o que tínhamos ao lado da casa, nesse eram visíveis os olhos dos jacarés, dezenas deles, os olhos refletem fortemente a luz das lanternas e o tamanho deles também indica o tamanho dos donos deles, não era difícil perceber que alguns desses impunham respeito, foi uma experiência única, misto de medo e empolgação de estar ali, mesmo a canoa estando furada… (acha que eu esqueci disso, nem pensar, a caneca já tinha se tornado parte de minha roupa)
Ficamos ali por mais de 20 minutos, quietos, claro, alguns jacarés tem o hábito de golpear os barcos por baixo segundo o barqueiro explicou naquele momento, mas precisam ouvir ou ver o barco 😃
Na volta para a cabana eu só conseguia pensar o quão interessante aquela viagem se revelava, eu estava em outro mundo, cheio de coisas a descobrir. O silêncio na canoa motivava várias e interessantes reflexões.
A Cachoeira
Seguimos rio acima logo cedo, fomos na voadeira por mais meia hora rio, a cachoeira não era exatamente uma cachoeira, mais pra uma corredeira com algumas pedras esparsas, mas tudo bem, no trajeto o caboclo foi apontando os pássaros (que só ele achava rapidamente), os cupinzeiros no alto das árvores, que eu vi pela primeira vez lá, estava acostumado com esses blocos de terra no chão, mas na Amazônia o chão pode encher d’água muito rápido 😃 .
Foi assim que vi árvores incríveis, araras de diversas cores, algumas cobras e mais alguns jacarés nas margens (vi muito mais jacarés que eu esperava, ok), foi outro dia interessante.
Airão velho
Nos despedimos cedo do caboclo, o sol mal havia nascido, o roteiro do último dia foi longo, primeiro iríamos até a tribo indígena que ficava ao lado do Parque Nacional do Jaú e tentar visitar, digo tentar porque dependia de uma autorização do cacique, mas não aconteceu, o cacique estava fora e os índios que estavam na aldeia resolveram não arriscar o contato com estranhos, foi uma visita de longe, apenas pude perceber como era grande e populosa a aldeia, dezenas de ocas, muitas crianças…
De lá seguimos para velho Airão. Tratava-se de um engenho de cana, o lugar mostrava claros sinais de muita riqueza, uma casa grande, uma igreja com escadarias de mármore outras construções azulejadas, com azulejos portugueses, claro, mas tudo em estado deplorável de conservação e os poucos minutos que ficamos por lá forma suficientes apenas para me contarem as lendas do lugar.
Sim, poucos minutos, em velho Airão havia formigas, milhares delas, das grandes e elas faziam questão de picar dolorosamente sem parar, passando por todas as proteções imagináveis, até dentro da bota encontrei formigas quando paramos pra almoçar.
Conta a lenda que o dono do engenho era uma pessoa ruim, muito ruim, e que as maldades acontecidas ali deveriam ser esquecidas, então as formigas vieram para garantir isso, ninguém poderia morar mais naquela terra, e as formigas também garantiam a destruição do que estava lá construído. Parecia loucura até sairmos de lá, andar no rio mais 3 minutinhos e chegar ao sítio de outro caboclo, produtor de farinha onde almoçamos, eram menos de 100 metros de distância no rio, mas acreditem, não havia uma formiguinha sequer lá, fiquei encucado com isso.
O almoço foi uma farofa de banana, também pude brincar um pouco no tonel de farinha que estavam engrossando, mas o engraçado foi ver o caboclo tentando esconder o tatu que estava preparando pra janta, ele tinha medo que eu contasse ao IBAMA, matar tatus na reserva era crime e ele não queria o trabalho de explicar onde tinha encontrado o tatu pra ninguém mas após alguma conversa me permitiu fotografar.
Fiquei curioso com os rendimentos que ele tinha com a farinha que produzia, ele disse que era muito bom, produzia em torno de dois sacos grandes por mês e isso rendia o dinheiro que precisava pro mês (na época equivalia a 1/10 de salário mínimo).
O retorno
Bem mais tranquilo que a ida fizemos o trajeto em cerca de 5h, nada como navegar a favor do rio, o barco bateu bem menos também, a atração ficou por conta de canoas que cruzamos, eram comerciantes que compram a farinha dos ribeirinhos e ou até trocam pelo que eles precisam, algumas passavam dias no rio e as pessoas meio que moravam nelas, podia-se ver panelas penduradas ao lado dos sacos de farinha em canoas que não tinham mais de 4 metros de comprimento por menos de 1 m de largura, sem dúvida a Amazônia é um universo paralelo.
As fotos
Infelizmente minha habilidade em tirar fotos a bordo de canoas se revelou bem ruim, algumas se salvaram, mas não fazem jus a experiência vivida nessa viagem, além de ter perdido um cartão de memória ao subir no barco em Airão velho quando estava meio ansioso para me livrar das formigas e não percebi um zíper do case da máquina aberto, pena, mas além das fotos ficaram as lembranças, valeu cada segundo.