Berlim na Alemanha

Em Berlin fui recebido por amigos brasileiros que moravam por lá há anos, agradeço muito todo carinho e disponibilidade dispensados na época, guardo as memórias de meus dias na cidade como especiais.
Era inverno, e na Alemanha o sol parece tirar férias no inverno, minhas fotos não estavam saindo muito a contento, pareciam descoloradas, mas em Berlim isso me incomodou menos que o normal, a cidade era cosmopolita num nível que eu sequer pensava existir, não apenas tive experiências únicas andando e observando o movimento na principal região da cidade como pude observar a cultura sendo criada em sua plenitude, depois de uma semana lá me tornei outra pessoa certamente.
Minhas caminhadas na cidade começaram em torno do Portal de Brandemburgo, eu tinha na memória ainda as cenas da queda do muro onde milhares de pessoas se concentraram próximos a ele no lado comunista da cidade, isso aumentava minha ansiedade em me ver passando nesse lugar.
A cidade estava em reforma, não havia praticamente um lado que se olhasse sem um ou dois guindastes, a maioria dos prédios históricos que ficaram do lado comunista por décadas passavam por restauração, estes lugares figuravam entre os mais famosos da cidade, como o Pergamon museun ou a tradicional universidade Humboldt, a própria avenida Unter den Linden era bonita demais, mesmo com as poucas folhas que restavam nas árvores que dão nome a ela.
Em contraponto, no lado capitalista a Gedächtniskirche (igreja da memória em tradução minha) impactava por ser mantida destruída, exatamente como ficou após a 2ª grande guerra, parado em frente a ela eu não conseguia pensar em algo diferente de me questionar os motivos que nos levam a guerras, considerando que os resultados são tão tristes, nada me parece justificar isso.
Minha caminhada pela Unter den Linden se estendeu por muitas horas, e atraído por alguns pontos marcados no mapinha turístico que eu havia recebido dos amigos me aventurei pelos bairros próximos também, graças a isso ganhei minha primeira história na cidade.
Já começava a anoitecer e decidi retornar pra casa, então me dei conta que havia saído da região coberta pelo mapinha turístico que eu tinha, eu estava literalmente perdido, o inverno esvaziava as ruas e não havia uma alma viva pra me ajudar com informações, de tantos zig-zags feitos na minha caminhada pelo bairro eu sequer sabia o caminho de volta.
Procurei sem sucesso por taxis e pontos de referência, não que a situação me preocupasse muito, no pior caso eu perderia algumas horas pra encontrar alguém ou como estava na região central logo apareceria uma estação de metro.
Aliás, o metro nessa cidade existe desde antes da guerra, mas com a divisão e o isolamento de parte dela, muitas estações de metro ficaram fechadas também por décadas para uso do público, o trem “capitalista” passava sob o território “comunista” e agora passavam por reforma também, logo não bastaria achar uma estação, precisava de uma aberta!
Então, no final da rua que eu estava surgiu uma pessoa, me animei a princípio, mas logo percebi que era um punk, com cabelo moicano rosa, algumas correntes penduradas, e mais alguns adornos comuns, tudo na minha visão preconceituosa da época era sinal de problema, eu entendia punks como violentos, especialmente com estrangeiros, além disso eu carregava uma máquina fotográfica nada discreta e temia problemas com isso, mesmo na mochila ela era perceptível. Minha primeira reação foi fugir, 😃  me coloquei a andar na mesma direção que o punk andava, assim ele não me alcançaria lembro de pensar.
Eu estava enganado, talvez eu já estivesse cansado pois caminhei o dia todo, mas o punk andava bem mais rápido, não levou 15 minutos para me alcançar e já pensando em tentar uma abordagem amistosa para evitar problemas, arrisquei pedir por ajuda.
Nesse momento percebi que eu estava muito, mas muito enganado mesmo, a ponto de me sentir envergonhado com a situação, o tal punk era simpático, educado e muito atencioso, provavelmente uma pessoa melhor que eu na época, ele parou pra me dar atenção, me explicou onde eu estava e ofereceu caminharmos juntos até a Gedächtniskirche, pois ficava no caminho dele, de lá eu sabia como retornar pra casa.
Durante a caminhada ele não parou de falar, interessado sobre de onde eu vinha e o que fazia em Berlim, onde já tinha visitado e o que tinha gostado, etc, soube que ele estudava filosofia na Humboldt e com menos de 30 anos já tinha outros dois cursos de graduação concluídos.
Quando chegamos à igreja eu, já bem a vontade com a situação, arrisquei a pergunta que meu lado preconceituoso desejava, por que ele era punk?
E a resposta foi a mais inesperada que poderia vir, “Pelas cores” – disse ele, e explicou que nascera no lado comunista, durante toda sua vida tudo que vestia ou usava era praticamente da mesma cor, que não havia diversidade, não havia diferenças visuais entre as pessoas na rua e isso o incomodava, quando o muro caiu e o capitalismo trouxe opções e ele se sentiu livre, coloriu o cabelo, fez tatuagens e assim se sentia especial, diferente!
Envergonhado de meus pensamentos anteriores e certo de que uma lição importante de vida havia sido vivenciada naquele dia, me despedi e agradeci a ajuda, mas a lição ficou marcada!
E Não pense você que vou me limitar a uma única história em Berlim  nem consigo escolher qual delas gosto mais, então vamos pular algumas horinhas na agenda por lá e passar direto pra noite do dia seguinte.
Meus amigos haviam comentado sobre festas que eram feitas nos prédios próximos do muro, no lado comunista, esses prédios ficaram fechados desde que o isolamento foi instituído e ainda não estavam em reforma, mantinham-se fiéis ao eram no pós-guerra, alguns caindo aos pedaços, mas outros aproveitados por um movimento underground que ocorria por lá na época.
Resolvi então conferir uma festa dessas, me informei sobre qual era mais segura (os amigos já haviam alertado que nem todas eram seguras 😃 ) e lá fui eu. E foi mais um choque de mundo pra mim, em um local amplo com pé direito alto, lembrando um pouco um estacionamento subterrâneo onde se vê muitas colunas mas não o final da sala, nem divisória alguma, centenas de pessoas se reuniam, cada um de um jeito, tudo misturado, com muita música eletrônica, bebidas coloridas, tudo era surreal.
Não me atrevi a experimentar as bebidas coloridas, e as vezes fumegantes, mas bebi algumas doses de vodka, só assim parecia possível processar um pouco do que eu via, em poucos metros que eu olhasse encontraria pessoas fantasiadas, punks e outras que como eu tentavam se vestir normalmente (e acabavam chamando mais a atenção, mas não fui abordado, nem questionado nessa condição), havia gente em balcões (e frente deles e sentados neles), outros em pequenas mesas esparsas e grupos em roda sentados  no chão, alguns dançavam aproveitando a música eletrônica alta que rolava, não vi mas certamente haviam drogas, e possivelmente outras coisas que eu não seria capaz de identificar, mas o incrível é que tudo isso acontecia em perfeita harmonia, havia paz e alegria no ambiente, havia respeito entre as várias tribos, era algo completamente diferente do que eu imaginava para uma festa underground na época. Todos se misturavam sem se preocupar com rótulos ou a que tribo pertenciam, todos se respeitavam.
Minha surpresa se manteve alimentada pelo nível de civilidade que acontecia na festa, fiquei por ali umas poucas horas aproveitando a aula de respeito a diversidade, mas a música me expulsou de lá, nunca fui muito fã de musica eletrônica, sai cedo, talvez antes daquela coisa boa que acontecia por lá acabasse e me decepcionasse, mas o pouco que fiquei me deu uma certeza, é possível o alto nível de respeito social!
Me restava um dia na cidade quando o roteiro que planejei se completou, foram muitas horas de caminhada, museus, visita a trechos ainda mantidos do muro, festas e conversas surpreendentes, eu posso dizer que estava satisfeito com a cidade quando meu anfitrião ofereceu me levar até o Palácio de Sanssouci, antigo palácio do rei da Prússia que ficava numa cidade próxima, Potsdam.
O palácio em si não é majestoso, bem diferente dos palácios que havia conhecido em outros lugares, construído em um terreno muito extenso ele possui várias pequenas construções que mimetizavam outras culturas, não muito precisas eu achei, mas isso não importava, vi ali a semente do lado cosmopolita de Berlim, o palácio tinha uma vocação muito maior em valorizar a diversidade em vez de se colocar em um lugar superior a outros palácios, foi um dia calmo, mas valeu a pena e recomendo a visita.
Ao deixar Berlim repensei muito de minhas atitudes pelo diferente, talvez tenha sido a primeira vez que me vi refletindo sobre o tema, e esse tema é hoje um dos mais frequentes em meus estudos, certamente a semente desse interesse se plantou aqui nessa cidade.